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sábado, 5 de junho de 2010

POR QUE DEFENDER O USO DO GENTÍLICO ACREANO?

Este artigo objetiva trazer ao foco da discussão a defesa do gentílico acreano, cuja chama parece, hoje, apagada. Ninguém fala sobre o assunto, é um silêncio que dói na alma e lega à orfandade uma história de lutas, a adjetivação de um povo que elegeu o Acre para integrá-lo à pátria brasileira. Não somos um povo perdido, sem chão, mas uma heróica gente que escolheu sua pátria, assim como seu gentílico. Então, sejamos altaneiros em defesa do nome que designa às pessoas nascidas sob o brilho do sol, da lua e das estrelas que ornamentam o céu do Acre.

Compreendo que o gentílico acreano é forma consagrada pelo uso regional desde o século XIX. Por isso, retirá-lo do VOLP, por força do Acordo Ortográfico, será contristar a comunidade regional na sua alma, além de apagar lindas páginas da epopéia acreana, ferindo tradições e costumes profundamente enraizados, desde a conquista deste solo. E a língua é a mais extraordinária engrenagem por onde circula a cultura de um povo.

Considero, também, que um gentílico não se muda por força de Acordo, Decreto, Lei. Um gentílico pertence à população do lugar, é nome sagrado que se guarda como um tesouro raro, que dá voz ao adjetivar um povo. E nesse particular, consagrou-se no meio lingüístico, em todos os tempos, as sábias palavras do grande gramático Fernão de Oliveira (1536) que “os homens fazem a língua, e não a língua os homens”.

Ademais, há consenso, entre os estudiosos, que os adjetivos gentílicos não seguem um padrão para as suas terminações. Essa ausência de padrão pode ser vista em nomes relativos às cidades. A maior parte deriva diretamente do nome do local, em sua forma corrente, ou então da etimologia toponímica. São exemplos que demonstram essa ausência de padrão: Lisboa: lisboeta, lisbonense, lisboês, lisbonês, lisbonino, olisiponense; Nova Iorque: nova-iorquino; Buenos Aires: bonaerense, buenairense ou portenho; Londres: londrino; Paris: parisiense.

Os exemplos denotam que não há na língua gentílico para todos os topônimos, mas há sempre a possibilidade de criá-los, com fácil aceitação geral. Ainda, é fato consagrado que quando um gentílico ganha força do uso ele se torna Lei. Um gentílico não se muda, ele está preso à vida, à alma do lugar, enraizado nas tradições, costumes. E a linguagem é o veículo tradutor de todo o arcabouço cultural de um povo, uma comunidade.

Para categorizar norma e uso, importante recorrer a autores consagrados, que ditaram rumos seguros para o trilhar de um idioma. O primeiro deles é Charles Bally, ao afirmar que uma palavra torna-se usual em duas oportunidades principais: 1) quando designa algo indissociavelmente ligado à vida de um grupo lingüístico; 2) quando dá a qualquer membro do grupo lingüístico a impressão de que isso não se diz assim, isso deve ser dito assim, isso aqui sempre foi e será dito assim. E mesmo que tais assertivas contradigam a expectativa de constante evolução da linguagem, elas se constituem em realidade absoluta, sem a qual seria impossível descrever um estado de língua.

O segundo teórico é o romeno Eugenio Coseriu, cuja preocupação não se resume em perguntar por que as línguas mudam, mas sim porque as mudanças ocorrem tal como ocorrem. E no espaço geográfico do Acre se impõe, por força do Acordo Ortográfico dos países losófonos, a inovação acriano. Soa como uma imposição que a comunidade não aprecia escrever ou ouvir. Pois, em linguagem, o falante é soberano na liberdade expressiva de dizer do mundo, ainda mais daquele no qual está integrado. Acreano é uma variação regional, eleita pela população há 129 anos.

O terceiro deles é o gramático e filólogo Evanildo Cavalcanti Bechara — a pessoa da Academia Brasileira de Letras que vai apreciar a matéria da mudança do gentílico — homem extremamente sensível às questões de linguagem e, em especial, acolhedor das tradições. Em sua gramática (2001), quando se dedica a conceituar língua, trata de duas possibilidades: a língua histórica e a língua funcional. Assim, a língua seria um produto histórico e, ao mesmo tempo, uma unidade idealizada, devido à impossibilidade de alcançar, na realidade, uma língua que se quer homogênea, unitária.

O gramático também considera que a língua nunca é um sistema único, mas um conjunto de sistemas, que encerra em si várias tradições. Veja-se ser reconhecedor das tradições e, por conseguinte, um seguidor delas. E continua ele: “Uma mesma língua apresenta diferenças internas: no espaço geográfico, no nível sócio cultural e no estilo ou aspecto expressivo”.

Compreende-se, então, ser fundamental, no caso acreano, olhar dois lados: o histórico e o lingüístico. O histórico assegura a manutenção de acreano, pela consagração do uso da forma ao longo de 129 anos. Do lado lingüístico deve-se considerar que o próprio Acordo está repleto de concessões ou exceções que permitem dupla grafia, palavras com acento agudo ou circunflexo, palavras com consoantes mudas, entre as muitas quebras de unidade entre o cânone europeu e o brasileiro.

Feitas essas remissivas, julgo ser um grande desserviço à pátria brasileira, bem como nova injustiça contra o povo acreano, decorrido mais de um século de uso, considerar-se errado um gentílico conquistado, constituído como signo de origem e de destino de um povo que lutou para determinar seu futuro e eleger sua pátria. O Brasil deve sentir orgulho dos acreanos que construíram o Acre e o legaram à Pátria Amada.

A população acreana não almeja, hoje, ferir tratados, acordos, decretos. Deseja tão somente o respeito da nação por sua história e tradição, bem como o reconhecimento dos intelectuais, pelo viés histórico, na convalidação dos tratados internacionais e nacionais, do nome que vem impregnado de lutas, sangue, glórias. Acreano é o gentílico construído pela tradição do povo Amazônico do Acre. E, nesse sentido, nenhum Acordo é mais imperioso que os costumes, a história, a tradição do lugar.

DICAS DE GRAMÁTICA ANTÁRTIDA ou ANTÁRTICA?

- No Brasil, a hesitação vai pouco a pouco se resolvendo em favor da forma internacional Antártica. Embora nossa legislação vacile entre as duas possibilidades Antártida e Antártica.

DESTRO/DESTREZA
- O que é ter destreza, mostrar destreza? É ter habilidade, agilidade, aptidão. Mas o primeiro sentido que aparece nos dicionários para “destreza” é “qualidade de destro”. E o que é “destro” (que se lê “dêstro”, com o “e” fechado, segundo os dicionários)? É “direito”, ou “que fica do lado direito”. Como a maioria das pessoas tem mais agilidade com a mão direita (destra) do que com a esquerda, a habilidade acabou sendo chamada de “destreza”.

Um comentário:

Unknown disse...

Estimada Professora,

Como sempre, eu achei formidável o seu artigo. Bem lógico, fundamentado e de uma beleza inigualável em forma e conteúdo.

Entendo que os nomes gentílicos, étnicos ou pátrios exprimem «procedência» ou «naturalidade». Há variadíssimas maneiras de os constituir. Recorre-se à utilização de uma grande diversidade de sufixos e desinências e, frequentes vezes, às formas latinas ou latinizadas das respectivas localidades.

Todavia, não se pode estabelecer uma regra única e rígida, porque o uso e a tradição impõem os seus direitos, forçando até o emprego de vocábulos sem nenhuma analogia mórfica com a denominação das terras ou lugares.
O seu artigo é um grito em defesa dos costumes e tradições acreanas>
parebéns por tão bonita lição.
Andreas

A vida da gente é feita assim: um dia o elogio, no outro a crítica. A arte de analisar o trabalho de alguém é uma tarefa um pouco árdua porque mexe diretamente com o ego do receptor, seja ele leitor crítico ou não crítico. Por isso, espero que os visitantes deste blog LINGUAGEM E CULTURA tenham coerência para discordar ou não das observações que aqui sejam feitas, mas que não deixem de expressar, em hipótese alguma, seus pontos de vista, para que aproveitemos esse espaço, não como um ambiente de “alfinetadas” e “assopradas”, mas de simultâneas, inéditas e inesquecíveis trocas de experiências.