PREFÁCIO
Prólogo é uma escrita
preliminar, como aqui faço, desta atraente obra do escritor Telmo Vieira,
intitulada Trópicos Selvagens. É tarefa difícil, porquanto se trata de um
romance amazônico, tecido com maestria, num enredo entrelaçado entre os valores
humanos, os costumes, a natureza e o viver nativo, onde se desenrola a
belíssima história, em narrativa telúrica, tendo por personagens centrais:
Itacir - filho do Shaneibú Siã, que desde cedo desenvolveu grande habilidade
para as atividades de caça, pesca e o manuseio de armas. Sobressaí-se dentre
todos os demais jovens da aldeia. É imbatível nos torneios de medição de força,
nas carreiras, na pontaria. Seu amor por Hanayara tem tons de sagrado; Hanayara
– jovem índia de 15 anos, dotada da beleza da vitória-régia e convertida
na razão do viver e do penar do jovem guerreiro Huni-Kuin. Linda, beleza sem
igual na história da grande nação. É adorada por toda a aldeia por sua
meiguice, doçura e candura. É um sonho divino, uma deusa que desceu do céu para
habitar a terra e quebrar regras injustas da sua tribo; Eliezér Maciel -
caixeiro viajante e representante comercial de uma das maiores firmas de Importação
e Exportação da praça da cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará. Rapaz
bonito, elegante, possuidor de um caráter modelar, mas com imperfeições
humanas, ciumento e vingativo. Entre esses três personagens forma-se o
triângulo amoroso. O ano é 1907, início do século XX.
Refere-se, maior parte da
história, às terras dos Hunis-Kuins (gente verdadeira), apelido dado pelos cariús
(brancos). Posteriormente de Kaxinawá, indígenas que habitavam, desde tempos
imemoriais, o vale Tarauacá, composto pelos rios Tarauacá, Muru, Envira, Jordão
e Rio Douro, estes últimos afluentes do Tarauacá, em sua cabeceira, do lado
direito.
A romance nem sempre mostra
harmonização entre natureza e cultura, como propõe o filósofo alemão Friedrich
Schiller (1991), como a única maneira de o ser humano vivenciar sua totalidade,
em equilíbrio, por meio da conduta do viver na floresta ou na cidade. O romance
descreve o modus vivendi da época, os tabus e preconceitos da sociedade, numa
linguagem bem elaborada, quando deixa vazar os sentimentos como arte literária
capaz de conduzir o leitor à compreensão dos preceitos que rodeiam os
personagens da trama.
Esse modo de o escritor Telmo
Vieira compor seu belo romance está em sintonia com os pressupostos literários
de que a literatura traduz a vida, harmoniza sentimentos e organiza ou
reogarniza as formas caóticas presentes no interior das pessoas. Pois como diz
Antonio Candido (2004), o texto literário atua, em grande parte, no inconsciente
e no subconsciente. Reside aí a importância da literatura na busca do
equilíbrio humano já que “assim como não é possível haver equilíbrio psíquico
sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura”
(CANDIDO, 2004, p.176).
Talvez por esse poder de agir sobre
o fazer e o dizer humano, o filósofo grego Platão, afirma, no Livro X, A
República, que a literatura representava uma séria ameaça à ordem do mundo
grego. Decorrente desse pensamento, propõe a expulsão dos escritores de Atenas,
pois a imitação seria apenas uma cópia das aparências e, por isso, só poderia
despertar nos ouvintes sentimentos nocivos, nunca a verdade. Essa posição
oponente de Platão, em relação aos literatos, é algo que “pode ser considerada
elogiosa à literatura, uma vez que reconheceu nela o poder de intervir na
formação do espírito e, assim, da realidade como um todo” (TODOROV,2009, p.8).
Assim sendo, o real perigo temido pelos filósofos gregos era justamente a
capacidade de a literatura incitar a insatisfação do ser humano na sua
condição, o que colocaria em risco a organização do mundo grego, que não
admitia questionamentos sobre o papel de cada pessoa na sociedade.
Nessa direção, Antônio Candido
(2004) defende a intrínseca relação da literatura com os direitos humanos, pois
a leitura do texto literário corresponde a uma necessidade universal que deve
ser satisfeita, sob pena de se mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar
forma aos sentimentos e à visão do mundo, ela organiza, liberta o ser humano do
caos e, portanto, o humaniza, como acontece na trama de Trópicos Selvagens,
quando os personagens centrais, ao final, harmonizam os sentimentos e a vida
segue os costumes e as tradições tribais.
Por tudo isso, “negar a fruição da
literatura é mutilar nossa humanidade” (CANDIDO, 2004, p.186). Assim acontece
no romance de Telmo Vieira, que ao descrever as mazelas sociais e os costumes
de uma tribo quase primitiva, mostra que o mundo dito ”civilizado” necessita de
um olhar realista e respeitoso sobre raças e etnias. Em verdade, ele mostra o
espaço temporal do livro como um cárcere de grades verdes, onde as pessoas se
defendem como o meio permite, conforme observa o poeta Renã Leite Pontes (2018,
p. 37), no poema El Hombre Pobre, no livro Oásis e Desertos: ”Quem vê de longe/
não sabe que a mata/hóstia pregada aos pés de um gigante/ cura e mata”.
Observa-se, então, no desenrolar da
obra, toda uma vulnerabilidade sociológica, que não é uma chaga moderna ou do
contexto amazônico, que o autor faz emergir, magnificamente, no romance, com o
foco narrativo em terceira pessoa, sendo o narrador onisciente, ou seja, ele
não só possui acesso aos pensamentos e sentimentos dos personagens, como também
expõe, ao longo da trama, comentários sobre as atitudes deles. Essa
parcialidade e falta de distanciamento do narrador serve para induzir o leitor
a acreditar na tese indianista, igualmente àquela de “O Guarani”, de José de
Alencar. Aqui, o índio Itacir é o herói salvador, que resgata e acolhe, num
gesto sublimado de amor, a sua Hanayara. É um romance cultural e heróico, de
leitura agradável e envolvente, ambientado na Amazônia do século XX, numa
atmosfera psico-social.
Ademais, é uma leitura que
suscita reflexões sobre a conduta humana, na direção, por certo, de formar
pessoas mais críticas e capazes de superar, ao máximo, suas fragmentações que
vêm impostas, com maior realce, a partir do advento da modernidade. E, para
tanto, é fundamental às pessoas vivenciarem, plenamente, a sua humanidade, e
achegarem-se à natureza da qual se afastaram, harmonizando-se com a cultura
para alcançarem o equilíbrio possível dentro de si, assim como fez a bela
Hanayara, que se valeu de sua índole, como sobrevivente de uma cultura nativa,
para punir, à luz de seus conceitos, a selvageria da qual foi vítima, como o
leitor irá observar na leitura de Trópicos Selvagens.
Portanto, o ser humano deveria,
antes mesmo de buscar viver plenamente a democracia, encontrar uma
vivência plena, capaz de conformar a sua própria humanidade, através da
superação da fragmentação humana a que é submetido nas sociedades ditas
modernas. A literatura tem esse poder, propicia o resgate daquela totalidade
vivenciada pela antiga civilização grega, quando a educação não formava
indivíduos especialistas, mas cidadãos com suas diversas potencialidades
desenvolvidas, sem a separação antagônica entre sua razão e sua sensibilidade.
Trópicos Selvagens é um romance que
chega para o deleite dos leitores, ávidos para descortinar o cenário amazônico,
como fizeram Inglês de Souza, Milton Hatoum, Bruno de Menezes, Dalcídio
Jurandir, Haroldo Maranhão, dentre outros, mas que hoje está silencioso,
carente de um novo romancista do porte de Telmo Vieira, que chegou para dizer:
na Amazônia Ocidental a literatura reacende a chama por meio de um grandioso
romance, rico em todos os aspectos, tais como as forças
internas da natureza, a floresta, os costumes, elementos que determinam o temperamento das pessoas do lugar. Procedendo assim, o
autor permite que o romance seja o espelho proverbial da natureza - a
verdadeira natureza humana - em vez de mera fantasia sobre uma terra que nunca
existiu, um El dorado imaginário.
E, assim, o romancista tece um
enredo que enfatiza os aspectos identitários e culturais da região, que são
relevantes e necessários. Primeiro, porque é uma forma de conhecer a
diversidade dos grupos humanos que aqui aportaram, indígenas, migrantes
internos que possuem formas de vida e trabalho, fracassos e expectativas que se
articulam no tecido da narrativa. Segundo, o enredo do romance é uma forma de
reconhecer que essa região não é apenas um “patrimônio ecológico estratégico”,
mas também uma reserva de formas de vida e relações com o mundo, onde índios,
caboclos e europeus trabalhadores vivem alegrias e frustrações. Embora a região
seja, hoje, um centro de importância ecológica, é também um centro de
elaboração constante de cultura e de imaginários.
Numa palavra final, louvamos esta
publicação-inciativa de desmistificação do conceito de índio e da ideologização
dos benefícios internos e da tranquilidade dada aos primeiros contatos dos
povos autóctones latino-americanos com os grupos exploradores europeus que aqui
aportaram. Não por acaso, inexiste voz homogênea diante da vulnerabilidade
social e, o tempo e a modernidade, estes titãs, não resolveram os problemas
sociais brasileiros, porquanto – agora – somos maioria de subjugados, nas
cidades, nas aldeias, neste terceiro mundo, onde está a Amazônia, espaço social
onde ecoa a voz de Trópicos Selvagens a iluminar a fé humana, a descrever a
cultura, expressá-la na literatura regional, conduzir o leitor à reflexão da
vida, dos valores humanos, das diferenças culturais e do amor salvador que
enfrenta às adversidades até encontrar o caminho da felicidade.
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Prof.ª Dr.ª Luísa Galvão Lessa
Karlberg -- Coordenadora da Pós-Graduação em Língua Portuguesa (Campus Floresta
(2010-2018); Orientadora de Pós-Graduação em nível de Mestrado e Doutorado;
Orientadora de Pós-Graduação Lato Sensu; Pesquisadora DCR/CNPq (2015-2018);
Embaixadora Internacional da Poesia, pela Casa Casimiro de Abreu; Grã-Chanceler
J.G. de Araújo Jorge; Presidente da Academia Acreana de Letras - AAL; Membro da
International Writers and Artists Association (IWA); Escritora e poeta.
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